Dinheiro do Inferno: Por Que os Chineses Queimam "Bilhões" em Notas Falsas para os Mortos?
Foto: Dinheiro cerimonial (emitido pelo "Banco do Céu e da Terra") e yuanbao queimados em túmulos de ancestrais durante o Festival dos Fantasmas, na Província de Jiangsu. Foto: Vmenkov.
Queimar dinheiro falso para os mortos pode parecer estranho à primeira vista. Mas, na China e em outros países do Leste Asiático, esse ritual é parte de uma tradição milenar que mistura espiritualidade, dever familiar e simbolismo econômico. O chamado “dinheiro do inferno” é um dos elementos mais visíveis — e muitas vezes mal compreendidos — da cultura funerária chinesa.
Apesar do nome, essas notas não têm nada de diabólicas ou ilegais. São uma forma simbólica de enviar riqueza aos entes queridos no pós-vida, com raízes profundas em crenças religiosas e sociais. Este artigo explora a origem, o significado e a evolução dessa prática, que ainda hoje marca presença em funerais, festivais e memoriais por toda a Ásia.
O que é o “dinheiro do inferno”?
Conhecido em chinês como míngchāo (冥鈔), o “dinheiro do inferno” é uma representação simbólica de papel-moeda, geralmente queimada como oferenda aos falecidos. Apesar de parecerem notas de banco, essas cédulas são produzidas exclusivamente para uso ritual. Não têm valor legal e não se destinam a circulação entre os vivos.
A prática parte da crença de que os mortos continuam existindo em um plano espiritual — e que, assim como no mundo dos vivos, eles precisam de dinheiro para viver com conforto, pagar dívidas ou até mesmo "pagar" autoridades espirituais. Queimar notas representa uma transferência simbólica dessa riqueza para o além.
O termo “dinheiro do inferno” é uma criação ocidental. A palavra inglesa “hell” (inferno) foi, ao que tudo indica, introduzida por missionários cristãos e mal interpretada como sinônimo do mundo espiritual chinês (Diyu). Essa tradução permaneceu, embora o conceito chinês seja mais próximo de um purgatório do que de uma condenação eterna.
Origens: das conchas funerárias às notas de papel
A ideia de enviar recursos aos mortos acompanha a cultura chinesa há milênios. Já na Dinastia Shang (1600–1046 a.C.), conchas de cauri — então usadas como dinheiro — eram enterradas com os mortos. Com o tempo, moedas reais também passaram a ser depositadas em túmulos, como as moedas de faca e as moedas Ban Liang durante o período dos Reinos Combatentes.
Para evitar o roubo de túmulos, o uso de imitações de moeda em argila ou metal barato substituiu o dinheiro real. Isso permitia preservar o valor simbólico das oferendas sem atrair saqueadores. Com o avanço da fabricação de papel, especialmente nas dinastias Wei e Jin (220–589 d.C.), surgiu o papel-joss — objetos de papel queimados em homenagem aos mortos, incluindo roupas, casas, utensílios e dinheiro.
A transição para o papel foi tanto espiritual quanto prática: além de facilitar o transporte simbólico ao mundo espiritual via fumaça, era mais barato e acessível às massas.
O pós-vida segundo a cosmologia chinesa
No centro da tradição está a ideia de que os mortos passam por um julgamento espiritual no submundo chinês, conhecido como Diyu (地獄). Ali, as almas enfrentam uma série de tribunais, julgadas por seus atos em vida. O governante desse reino, o Rei Yama (Yanluo Wang), comanda um sistema burocrático e hierárquico, semelhante à administração pública dos vivos.
Nesse contexto, o dinheiro do inferno é visto como um instrumento útil para “navegar” o mundo espiritual: pagar dívidas, suavizar punições ou adquirir bens simbólicos. O submundo não é definitivo. Após o julgamento e a expiação, a alma pode reencarnar — e as oferendas podem ajudar a encurtar esse caminho.
Como são as notas do inferno?
As cédulas queimadas são ricamente decoradas e geralmente apresentam valores astronômicos: 10 mil, 1 bilhão, até trilhões de unidades. Algumas trazem figuras mitológicas, como o Imperador de Jade (o mais alto deus do céu no Taoismo), o próprio Rei Yama, ou ainda ícones da cultura chinesa tradicional.
Notas modernas podem também mostrar figuras históricas e da cultura pop, como John F. Kennedy, Joseph Stalin, Marilyn Monroe e até James Dean — mostrando como o ritual se adaptou à globalização e ao humor contemporâneo. Em algumas comunidades, essa prática é encarada com leveza e até ironia, refletindo uma espécie de "hiperinflação espiritual".
Quando e como se queima o dinheiro do inferno?
As notas são queimadas em diversas ocasiões:
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Durante funerais e rituais de cremação
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Em visitas aos túmulos dos antepassados
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No Festival Qingming (ou Festival da Limpeza dos Túmulos), em abril
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No Festival dos Fantasmas Famintos, celebrado no sétimo mês lunar
O ritual pode ser simples ou altamente elaborado. Algumas famílias dobram as notas em formas específicas antes de queimá-las, outras constroem maquetes de casas, carros ou até vilas inteiras feitas de papel-joss. A queima é frequentemente realizada em encruzilhadas, acreditando-se que os espíritos podem acessar mais facilmente o mundo dos vivos por esses caminhos.
Tradição viva, mas com limites
Apesar de ser uma tradição respeitada, o governo chinês, desde 2006, tem restringido algumas formas de oferendas consideradas “vulgares” ou “excessivas”. Réplicas de amantes, vilas de luxo ou bens de consumo extravagantes foram alvo de proibições em algumas cidades, como parte de uma campanha para conter práticas vistas como supersticiosas.
Ainda assim, o dinheiro do inferno em si permanece legal — e amplamente utilizado. Sua continuidade demonstra a força e a resiliência das crenças ligadas à piedade filial, um valor fundamental na cultura chinesa: honrar, cuidar e manter viva a memória dos antepassados.