📖 Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen
📰 Publicado no BOLETIM 77 da SNB
No século XX, processos inflacionários e a crescente escassez de metais preciosos, fizeram aumentar significativamente a importância das cédulas de papel nas trocas comerciais, importância essa que se materializou na intensificação da produção e circulação do papel-moeda, em detrimento do valor de face e do poder de compra das moedas metálicas, ambos decrescentes no tempo. Por essa razão, ocorreu um verdadeiro fenômeno de popularização das moedas (não mais cunhadas em ouro e cada vez menos em prata), no sentido de servir às massas populares como o dinheiro do dia-a-dia, utilizado, por excelência, nas pequenas trocas comerciais cotidianas, tendo em vista seu baixo poder aquisitivo.
Portanto, nas décadas que se seguiram desde o início do século passado, vive-se a desvalorização monetária do dinheiro cunhado em moedas, mas, por outro lado, houve grande penetração das moedas entre as camadas populares, estando sempre presentes nos bolsos das pessoas mais humildes, e circulando de mão em mão no comércio das grandes cidades, apinhadas de trabalhadores.
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Sabe-se que após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), seguiu-se um ferrenho embate ideológico entre ideologias políticas antagônicas, qual seja, o comunismo e o fascismo, em torno da sucessão do liberalismo clássico, doutrina hegemônica durante todo o século XIX, mas eivada de contradições que a levaram ao auge de sua decadência nos anos 20. Tal dado histórico é relevante para o presente estudo, pois os regimes autoritários e nacionalistas, como o próprio fascismo italiano e os demais regimes influenciados em diferentes medidas por este último, que ascenderam ao poder nas décadas de 1920 e 1930, tinham a propaganda como ferramenta importantíssima de divulgação das suas respectivas ideologias entre o povo, e, por conseguinte, não hesitaram ao estampar novas moedas postas em circulação, com os símbolos dos seus partidos políticos e as efígies dos ditadores recém-empossados. Nesse cenário, por exemplo, a suástica nazista apareceu nas moedas da Alemanha, o então “Terceiro Reich” de Hitler, a partir de 1936; no mesmo ano, o fasces, apropriado como símbolo máximo pelos fascistas, foi introduzido nas moedas da Itália de Benito Mussolini; a efígie de Francisco Franco e o símbolo da Falange Espanhola, apareceram nas moedas da Espanha ainda na década de 1940; e por aqui, a efígie de Getúlio Vargas, passou a figurar ainda nas moedas de réis a partir de 1938, com a aurora do “Estado Novo”, e assim continuou a ocorrer após a instituição do Cruzeiro como unidade monetária brasileira, pelo Decreto-lei nº 4.791, de 05 de Outubro de 1942.
O que se pretendeu demonstrar com a explicação histórica constante do parágrafo anterior, é que se percebeu, naquele período, a possibilidade de utilizar as singelas moedas metálicas, que então já pouco compravam, como instrumento acessório de divulgação de signos ideológicos, tanto o próprio símbolo do partido e seu respectivo ideário quanto à figura do líder carismático que o comandava, de modo a afeiçoar o cidadão com a simbologia do poder dominante. Não requer grande esforço, a exemplificação da importância de certos símbolos, no que diz respeito à criação de um elo de identificação entre os seguidores e o que aqueles simbolizam, se utilizarmos como exemplo a cruz cristã. De qualquer modo, no Brasil, um movimento político da década de 1930, influenciado pelo fascismo italiano, mas que nunca chegou ao poder central, utilizou as moedas então circulantes para divulgar clandestinamente o símbolo escolhido para representá-los. O referido movimento foi o chamado “Integralismo”, e o emblema que ostentavam era a letra grega “Sigma” (Σ).
Liderado por Plínio Salgado, o movimento político conhecido como “Ação Integralista Brasileira” (AIB) foi lançado em 1932, com a publicação de um manifesto que consubstanciava o ideário integralista, marcadamente autoritário, nacionalista, antiliberal e religioso. Defendiam, segundo Armando Filho (1999):
Um governo forte, o Estado todo-poderoso e militarizado, censura às atividades artísticas e aos meios de comunicação, regime de partido único, liderado por um chefe incontestável, defesa da propriedade privada, a disciplina e a hierarquia dentro da sociedade, o predomínio dos interesses da Nação sobre o indivíduo, o nacionalismo extremado, o uso da violência contra adversários políticos, o fechamento de todas as organizações operárias e, principalmente, propunha o combate brutal e sem tréguas ao comunismo.
(ARMANDO FILHO, 1999, p. 36).
Assim, emulando o nazi-fascismo europeu, os integralistas valorizavam a propaganda, os rituais e os símbolos, em boa parte herdados das fontes inspiradoras no velho continente, como elementos fundamentais para a socialização ideológica dos seguidores do movimento. É nesse sentido que Hélgio Trindade (1979), em obra definitiva sobre o tema, afirma que:
O integralismo atribui muita importância aos símbolos. Entre estes, o principal é a letra grega sigma maiúsculo, que pretende simbolizar a ideia de que o movimento pretende ser um “somatório”: “ela lembra que o nosso Movimento é no sentido de integrar todas as Forças Sociais do País na suprema expressão da Nacionalidade”. Além desta interpretação, os Protocolos [integralistas] invocam outras significações ao símbolo: “é a letra com a qual os primeiros cristãos da Grécia indicaram a palavra Deus”, ou também a “estrela Polar do hemisfério sul”. Este símbolo encontra-se gravado na bandeira e em todos os emblemas integralistas.”
(TRINDADE, 1979, p. 188-189).
Ocorre que, na década de 1930, seguidores do movimento adotaram a prática de carimbar o “sigma” nas moedas de réis em circulação, com o objetivo de divulgar entre a população, o símbolo máximo do movimento ou quiçá para instigar curiosos a buscar entender do que se tratava tal símbolo que marcava a moeda que havia chegado até suas mãos. A marca ficou conhecida como o “carimbo integralista”. Eugênio Vergara Caffarelli (2002), em sua obra “As Moedas do Brasil: desde o Reino Unido - 1818-2000”, descreve uma moeda de 200 réis de 1901, “com dois carimbos do símbolo do Partido Integralista, representado pela letra do alfabeto grego ‘Sigma’”. Afirma ainda que “este símbolo aparece em diversos tipos de moedas, geralmente com um único carimbo.”
(CAFFARELLI, 2002, p. 357).
Supostamente, em 1944 o diretor da casa da moeda proibiu a gravação das siglas dos desenhistas e gravadores nos cunhos das moedas do padrão Cruzeiro instituído em 1942, “por suspeita de que fossem usadas como símbolos do integralismo”, apesar de que a Ação Integralista Brasileira (AIB) já havia sido dissolvida alguns anos antes, no final de 1937, com o início ditadura do Estado Novo.
De qualquer modo, as moedas marcadas pelo “carimbo integralista” tornaram-se cobiçadas peças numismáticas no mercado do colecionismo e explicitam parte do encanto inerente à própria numismática, considerada como campo de estudo, por mostrar a riqueza histórica que pode conter um pequeno pedaço de metal, vestígio material de tempos passados, e mais ainda, a riqueza histórica oriunda de uma marca milimétrica e discreta, gravada em moedas circuladas, portanto não perfeitas em seu estado de conservação, afastando a altivez das peças que mais saltam aos olhos, em benefício de contar (independentemente de juízos de valor quanto ao significado do símbolo e à ideologia que lhe deu origem) sobre um fenômeno único da história política brasileira.
Referências
ARMANDO FILHO. O Integralismo. São Paulo: Editora do Brasil, 1999.
TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. 2. ed. São Paulo: DIFEL, 1979.
CAFFARELLI, Eugênio Vergara. As Moedas do Brasil: desde o Reino Unido - 1818-2000. 2. ed. São Paulo: Editado pelo autor, 2002.
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