As moedas do Vaticano contam uma história de fé, poder e continuidade. Muito além do metal, elas são fragmentos de uma narrativa que atravessa séculos e mudanças políticas, refletindo a soberania da Igreja em diferentes tempos — do antigo Estado Pontifício à Cidade do Vaticano atual.
Quando a fé valia ouro
Antes da unificação italiana, o Papado era também um poder temporal, com território e exército próprios. E, como todo Estado soberano, tinha sua moeda: o Scudo Pontifício, cunhado em ouro e prata. Ele circulava junto de outras denominações, como o Baiocco e o Testone, e exibia o retrato do Papa e símbolos da Igreja — uma maneira de afirmar autoridade, fé e prestígio.
A produção era descentralizada: Roma, Bologna, Ancona e outras cidades tinham casas da moeda próprias. Esse sistema, que mostrava a força do Estado Pontifício, acabou se tornando um ponto fraco. Quando o Reino da Itália tomou Roma, em 1870, as oficinas foram absorvidas e a cunhagem papal cessou. Começava ali um longo silêncio monetário.
O “vácuo” da Questão Romana
Por quase 60 anos, entre 1870 e 1929, os Papas não tiveram moeda própria. Roma estava sob domínio italiano, e a Lira Italiana passou a circular no Vaticano. Foi o período em que o pontífice se considerava “prisioneiro” dentro dos muros da Basílica de São Pedro — um símbolo da perda de poder político, mas também da resistência de uma autoridade espiritual que não cedia.
A Lira Vaticana: o renascimento da soberania
A virada veio com os Pactos de Latrão, assinados em 1929. O acordo entre a Santa Sé e o governo de Benito Mussolini reconheceu a independência do Vaticano e permitiu a criação de uma nova moeda: a Lira Vaticana (VAL). Paritária à italiana, ela voltou a trazer o rosto do Papa e o brasão da Santa Sé — uma forma de reafirmar, em metal, a soberania recém-restaurada.
As emissões eram limitadas, voltadas mais para colecionadores do que para o uso diário. Isso transformou as moedas em objetos de desejo, e o Vaticano logo percebeu o valor simbólico e financeiro dessa exclusividade. Cada série representava um capítulo da história papal e uma fonte de receita importante para o Estado.
Do ouro ao euro: o Vaticano na era moderna
Com a chegada do euro, em 2002, o Vaticano manteve o direito de emitir suas próprias moedas — privilégio garantido por uma convenção com a União Europeia. As peças são cunhadas na Casa da Moeda da Itália e seguem o mesmo padrão técnico das demais nações da zona do euro, mas guardam um toque de singularidade: exibem o brasão ou a efígie do Papa.
Durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, o rosto do Papa dominava as moedas. A partir de 2017, Francisco mudou a tradição. Pediu que seu retrato fosse substituído pelo brasão de armas, reforçando a ideia de que a moeda deve representar o cargo e não a pessoa — um gesto de humildade e de continuidade institucional.
Pequeno Estado, grande legado
Hoje, o Ufficio Filatelico e Numismatico (UFN) administra a emissão das moedas e selos do Vaticano. O órgão mantém viva a tradição de unir fé, arte e história em tiragens limitadas e comemorativas. Cada moeda é cuidadosamente planejada, muitas delas dedicadas a temas simbólicos, como o Ano Santo, os Pactos de Latrão ou a oração solitária do Papa Francisco na Praça de São Pedro durante a pandemia.
O sucesso dessas emissões mostra que, mesmo com apenas 44 hectares de território, o Vaticano continua a projetar sua soberania no mundo. As moedas papais são, ao mesmo tempo, objeto de colecionismo e testemunho histórico — pequenos círculos de metal que continuam a contar, com brilho e silêncio, a história de dois mil anos de fé e poder.
Foto de DAVID ILIFF. Licença: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/